Imagens ressignificadas
Imagens de filmes antigos. Clássicos do cinema. Um filme mudo da década de 20. Um melodrama ou uma comédia musical das décadas de 30 e 40, com Gary Cooper ou Carmen Miranda.
São pequenos fragmentos de narrativas, seqüências de algum filme que você já deve ter visto, que Dirnei Prates se apropria, toma para si e os transforma, criando novas ficções (suas próprias ficções). Em parte como uma homenagem ao próprio cinema, em parte como um exercício do olhar, que percebe os clichês ali presentes, e os destaca, manipulando as imagens e amplificando algum aspecto dessas narrativas. Pode ser um gesto, uma fala, uma expressão. Em filmes curtos, ele tece seu comentário, opera um desvio e cria um novo sentido.
Os artistas têm feito isso há muito tempo. Podemos falar de uma migração das imagens no cinema, conforme J.C.Bernardet ou de apropriação, procedimento que surge com os artistas das primeiras vanguardas, junto com as colagens e fotomontagens. Mas há nesta série, Ficções apropriadas, uma clara conexão e uma relação que podemos estabelecer, dentro do campo do cinema, com os filmes de found-footage, cujo essencial, segundo Udo Jacobsen é “abrir um material já existente para novos significados ou descobrir eventuais significados ocultos na própria imagem”. Os filmes de Dirnei tem uma relação estreita com esta tradição, especialmente com o trabalho de Martin Arnold.
O found-footage tem sua origem nos filmes da cineasta russa Ester Schub, que em 1927 realiza A queda da Dinastia Romanov, documentário feito partir da pesquisa de filmes de arquivo da Rússia Czarista. Passa pela obra de Joseph Cornell, artista da vanguarda que realiza “Rose Hobart” em 1936 - uma homenagem a esta atriz, feito a partir da “colagem” de cenas de diferentes filmes em que ela atua. Nos anos 60 e 70, vários artistas do cine experimental trabalham com essa prática, do excelente Crossroads de Bruce Conner, passando pela obra de Ken Jacobs e Ernie Gehr. Nos anos 80 e 90 podemos citar artistas como Matthias Muller e Peter Tscherkassky. E há ainda a obra 24-Hour Psycho, de Douglas Gordon, feita para um espaço de exposição onde é exibido em várias telas, em que o filme clássico de Alfred Hitchcock tem sua duração alterada.
Ficções apropriadas nasce de filmes antigos comprados do acervo de fitas vhs de sua locadora ou assistidos na tv a cabo e cujas imagens são capturadas digitalmente, mantendo no entanto, toda textura do vhs. Mas o mais importante nessa prática, é o olhar de Dirnei, que tem o desejo de manipular essas imagens e que está atento para escolher aqueles trechos de filmes em que se percebe um sentido além do óbvio, além do que está evidente, como diria Barthes. Ele escolhe fragmentos em que há um algo a mais, algo que o interroga. Esses pequenos trechos podem ser alguns planos retirados de um filme e remontados, ou uma seqüência inteira. Em Delilah, fica preservada quase a mesma decupagem da sequencia original: a patroa pede a típica empregada negra, simpática e alegre, que mostre seu sorriso para um fotógrafo, sorriso com o qual ela pretende vender suas panquecas... Dirnei acrescenta e intercala várias vezes na montagem original o plano de Delilah sorrindo, cuja reiteração mostra e reforça a ironia e o inusitado da situação. Crítica a um sistema de imagens e a uma mídia que ainda trabalha com os clichês da figura do negro na cultura.
Já em Sertão, a interferência que Dirnei faz nas imagens se dá na alteração da velocidade da cena em que o personagem vai ser arrastado pelas águas de uma represa. As imagens são ralentadas e são acrescentados gemidos que reforçam a expressão do ator, entre dor e gozo - e que no original, mudo, é acompanhado apenas da música. O título nesse trabalho dá outra dimensão às imagens, abrindo para outras leituras.
As interferências e ruídos que Dirnei acrescenta nestes vídeos, como ele mesmo afirma, tem a intenção de propor um outro caminho para o filme, e sugerir-nos um outro sentido.
Artista que começa com a fotografia, trabalha já há alguns anos com vídeo, participando de salões de arte contemporânea, mostras e festivais de filmes experimentais no Brasil, inclusive com obras premiadas. Nos primeiros filmes que vi de Dirnei, por volta de 2006, o que me impressionou foi a força da imagem e das suas narrativas. Em Timor Mortis Conturbat Mea, há uma torrente de imagens que nos envolve sensorialmente em uma narrativa fragmentada e que nos dá uma outra percepção do tempo, um tempo descontínuo. Paisagens, pequenos momentos do cotidiano, são associados de forma livre. São imagens feitas com celulares ou câmeras vhs, de baixa resolução, mas cujo grão proporciona uma textura e uma crueza admiráveis.
Nos trabalhos de Dirnei e em sua prática artística percebem-se algumas convicções. O fato de se utilizar de imagens de outros filmes, feitas por outros artistas, vem dessa certeza de que se já há tantas imagens no mundo, porque filmar mais? Em relação à tecnologia, há esse desprendimento de utilizar imagens com baixa resolução, que convivem com equipamentos digitais de edição e de trabalho com a imagem. O que importa é a imagem e o que ela nos provoca. Esteticamente, afirma a opção por uma imagem com ruídos, uma imagem tátil. Mas também, imagens e narrativas, capazes de nos afetar, de nos fazer parar e pensar um pouco sobre o que estamos vendo.
Num momento em que cada vez mais os artistas trabalham com o vídeo, nesta exposição podemos ver uma obra particular e fruto de uma pesquisa promissora. Dirnei partilha conosco suas pequenas homenagens ao cinema, seu olhar e suas interrogações sinceras.
Marcelo Gobatto
Doutorando em Poéticas Visuais / UFRGS
Imagens de filmes antigos. Clássicos do cinema. Um filme mudo da década de 20. Um melodrama ou uma comédia musical das décadas de 30 e 40, com Gary Cooper ou Carmen Miranda.
São pequenos fragmentos de narrativas, seqüências de algum filme que você já deve ter visto, que Dirnei Prates se apropria, toma para si e os transforma, criando novas ficções (suas próprias ficções). Em parte como uma homenagem ao próprio cinema, em parte como um exercício do olhar, que percebe os clichês ali presentes, e os destaca, manipulando as imagens e amplificando algum aspecto dessas narrativas. Pode ser um gesto, uma fala, uma expressão. Em filmes curtos, ele tece seu comentário, opera um desvio e cria um novo sentido.
Os artistas têm feito isso há muito tempo. Podemos falar de uma migração das imagens no cinema, conforme J.C.Bernardet ou de apropriação, procedimento que surge com os artistas das primeiras vanguardas, junto com as colagens e fotomontagens. Mas há nesta série, Ficções apropriadas, uma clara conexão e uma relação que podemos estabelecer, dentro do campo do cinema, com os filmes de found-footage, cujo essencial, segundo Udo Jacobsen é “abrir um material já existente para novos significados ou descobrir eventuais significados ocultos na própria imagem”. Os filmes de Dirnei tem uma relação estreita com esta tradição, especialmente com o trabalho de Martin Arnold.
O found-footage tem sua origem nos filmes da cineasta russa Ester Schub, que em 1927 realiza A queda da Dinastia Romanov, documentário feito partir da pesquisa de filmes de arquivo da Rússia Czarista. Passa pela obra de Joseph Cornell, artista da vanguarda que realiza “Rose Hobart” em 1936 - uma homenagem a esta atriz, feito a partir da “colagem” de cenas de diferentes filmes em que ela atua. Nos anos 60 e 70, vários artistas do cine experimental trabalham com essa prática, do excelente Crossroads de Bruce Conner, passando pela obra de Ken Jacobs e Ernie Gehr. Nos anos 80 e 90 podemos citar artistas como Matthias Muller e Peter Tscherkassky. E há ainda a obra 24-Hour Psycho, de Douglas Gordon, feita para um espaço de exposição onde é exibido em várias telas, em que o filme clássico de Alfred Hitchcock tem sua duração alterada.
Ficções apropriadas nasce de filmes antigos comprados do acervo de fitas vhs de sua locadora ou assistidos na tv a cabo e cujas imagens são capturadas digitalmente, mantendo no entanto, toda textura do vhs. Mas o mais importante nessa prática, é o olhar de Dirnei, que tem o desejo de manipular essas imagens e que está atento para escolher aqueles trechos de filmes em que se percebe um sentido além do óbvio, além do que está evidente, como diria Barthes. Ele escolhe fragmentos em que há um algo a mais, algo que o interroga. Esses pequenos trechos podem ser alguns planos retirados de um filme e remontados, ou uma seqüência inteira. Em Delilah, fica preservada quase a mesma decupagem da sequencia original: a patroa pede a típica empregada negra, simpática e alegre, que mostre seu sorriso para um fotógrafo, sorriso com o qual ela pretende vender suas panquecas... Dirnei acrescenta e intercala várias vezes na montagem original o plano de Delilah sorrindo, cuja reiteração mostra e reforça a ironia e o inusitado da situação. Crítica a um sistema de imagens e a uma mídia que ainda trabalha com os clichês da figura do negro na cultura.
Já em Sertão, a interferência que Dirnei faz nas imagens se dá na alteração da velocidade da cena em que o personagem vai ser arrastado pelas águas de uma represa. As imagens são ralentadas e são acrescentados gemidos que reforçam a expressão do ator, entre dor e gozo - e que no original, mudo, é acompanhado apenas da música. O título nesse trabalho dá outra dimensão às imagens, abrindo para outras leituras.
As interferências e ruídos que Dirnei acrescenta nestes vídeos, como ele mesmo afirma, tem a intenção de propor um outro caminho para o filme, e sugerir-nos um outro sentido.
Artista que começa com a fotografia, trabalha já há alguns anos com vídeo, participando de salões de arte contemporânea, mostras e festivais de filmes experimentais no Brasil, inclusive com obras premiadas. Nos primeiros filmes que vi de Dirnei, por volta de 2006, o que me impressionou foi a força da imagem e das suas narrativas. Em Timor Mortis Conturbat Mea, há uma torrente de imagens que nos envolve sensorialmente em uma narrativa fragmentada e que nos dá uma outra percepção do tempo, um tempo descontínuo. Paisagens, pequenos momentos do cotidiano, são associados de forma livre. São imagens feitas com celulares ou câmeras vhs, de baixa resolução, mas cujo grão proporciona uma textura e uma crueza admiráveis.
Nos trabalhos de Dirnei e em sua prática artística percebem-se algumas convicções. O fato de se utilizar de imagens de outros filmes, feitas por outros artistas, vem dessa certeza de que se já há tantas imagens no mundo, porque filmar mais? Em relação à tecnologia, há esse desprendimento de utilizar imagens com baixa resolução, que convivem com equipamentos digitais de edição e de trabalho com a imagem. O que importa é a imagem e o que ela nos provoca. Esteticamente, afirma a opção por uma imagem com ruídos, uma imagem tátil. Mas também, imagens e narrativas, capazes de nos afetar, de nos fazer parar e pensar um pouco sobre o que estamos vendo.
Num momento em que cada vez mais os artistas trabalham com o vídeo, nesta exposição podemos ver uma obra particular e fruto de uma pesquisa promissora. Dirnei partilha conosco suas pequenas homenagens ao cinema, seu olhar e suas interrogações sinceras.
Marcelo Gobatto
Doutorando em Poéticas Visuais / UFRGS
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