quarta-feira, 6 de outubro de 2010

Entre Águas

Entre águas

Entre o estático e o movimento; entre o fixo e a transformação; entre o próximo e o distante; entre a transparência e a opacidade; entre o que se ouve e o que se vê. A preposição entre, com toda sua carga de definição e – sobretudo e paradoxalmente – de oscilação, sinaliza o alargamento das possibilidades sensoriais e interpretativas do conjunto de imagens que Dirnei Prates e Nelton Pellenz apresentam sob o título Salas de Chuva. Trabalhando juntos desde 2006, os artistas têm pautado suas investigações nas especificidades decorrentes desses interstícios, no exame acurado das linguagens do vídeo, e na adoção do elemento água como o aglutinador de uma série de idéias acerca de transitoriedade, fluidez, prazer e memória.

Na primeira das Salas de Chuva, impera o baralhamento dos sentidos. A instalação Chuva 7, por exemplo, é composta de três vídeos exibidos em televisores de 22” e colocados em caixas junto ao chão, com os monitores voltados para cima. Nos três temos enquadramentos fixos, contemplando ora poças d’água, ora o detalhe de um terreno acidentado. Em meio a uma certa rigidez que caracteriza esses recortes, percebe-se uma curiosa movimentação, não do vídeo em si, mas dos elementos da natureza, que se manifestam visual e sonoramente. São pingos, muitos pingos de chuva, que atravessam a imagem em diagonal, formando um fluxo. Em instantes, onde havia terra, uma pequena depressão topográfica surge, escavada pelo líquido abundante que vai de um lado a outro, movimentando fragmentos e resíduos antes imperceptíveis. Em outra passagem, um tanque com águas límpidas também tem seu caráter diáfano posto à prova pela presença da chuva que, intempestiva, faz com que tudo tremule e saia do seu cômodo arranjo. Nesse contexto, formas reconhecíveis como pedras ou a sombra de uma vegetação ribeirinha diluem-se em manchas e borrões. Vigorosa e desestabilizadora, a água faz com que elementos que estavam no fundo possam emergir, com que outros que se encontravam na superfície sejam levados pela correnteza, numa sucessão de ciclos que exigirá sempre novas configurações, alertando-nos metaforicamente para a efemeridade e a impermanência.

Esse aspecto fugaz é reforçado pelos sons, ora torrenciais e enfáticos, ora suaves e ternos. E uma vez que cada um dos três vídeos apresenta uma duração e um ritmo de chuva próprios e que eles são exibidos não apenas concomitantemente, mas em looping, temos a sobreposição de vários tempos, reforçando a perturbação e a singularidade da experiência.

Um aspecto semelhante é explorado em Chuvas 3, 4 e 5, de Dirnei Prates, que pegam de empréstimo o formato e o estatismo da fotografia. Exibidos junto à parede, em porta-retratos com 10”, esses trabalhos se apropriam de imagens do clássico Cantando na Chuva (1952), filme de Stanley Donen e Gene Kelly. Na mais famosa cena do musical, Kelly, depois de se despedir de Debbie Reynolds com um beijo apaixonado, começa a tomar o rumo para sua casa. É noite e chove profusamente, mas ele, em estado de deslumbramento, diverte-se com a chuva, dança e sapateia em meio às poças, faz malabarismos com o artefato que deveria protegê-lo de tanta água. A ação se passa em cerca de quatro minutos, mas nos vídeos de Prates, segundos dessa emblemática performance são isolados e estendidos a um tempo de quase uma hora. Aparentemente fixas, as imagens são também quase fotografias. Novamente no intervalo, no entre.

O movimento da imagem foi retardado por um hiper-slow-motion, que secciona os gestos, prolongado-os e, com isso, dilatando poeticamente o tempo, tão fugidio. Esse recurso da linguagem do vídeo já foi usado por vários artistas, como Bill Viola, em The Greeting (1995), apresentado na Bienal de Veneza de 2001. Tal procedimento, pelas próprias características da varredura da tela, leva a uma diluição da forma, e a imagem surge borrada, sem nitidez.

Nesses três trabalhos de Prates, há como que uma vertigem de linguagens. Dançando na Chuva, como o cinema tradicional, parte de imagens individuais e imóveis, visíveis a olho nu e que, projetadas em uma tela com velocidade regular, dão a impressão de continuidade. Trata-se de um efeito ilusionístico. Ao se apropriar de fragmentos do filme e explorá-los com os recursos do vídeo, de certa forma o artista referencia essa natureza fotográfica do cinema e o artifício mecânico por trás da percepção de movimento. Nesse sentido, o suporte escolhido para a exibição das imagens é bastante pontual, remetendo-as à sua origem conceitual. Ao mesmo tempo, é lícito pensar que, uma vez em “porta-retratos”, as imagens assumem o pretenso caráter de eternidade e imutabilidade que freqüentemente associamos à fotografia.

Entra em cena também, neste formato, a contemplação vagarosa dos passos de Gene Kelly. E, com o estiramento, é prolongado o próprio prazer de acompanhar o ator em sua frenética coreografia. Sobretudo ao espectador familiarizado com o filme, Prates oferece ainda uma outra experiência temporal, articulada a partir do processo de identificação, rememoração e antecipação: há o passado da imagem, o seu presente, e o futuro, que o público completa mentalmente, podendo inclusive “ouvir” as águas abundantes e a voz de Kelly, cantando na chuva.

O elemento narrativo mantém-se em Chuva 6. Novamente partindo de um referencial do cinema, aqui Dirnei Prates fotografou duas passagens do filme Psicose (1960), de Alfred Hitchcock. Os frames de vídeo, exibidos em monitores de TV de 40”, sugerem uma seqüência graças à justaposição das imagens, ao mesmo tempo em que enfatizam, uma vez mais, os trânsitos entre fotografia, cinema e vídeo.

Na segunda Sala de Chuva, Nelton Pellenz reporta o espectador ao próprio ambiente de cinema, no qual, com intervalos de cinco minutos, são exibidos Chuva 1 e Chuva 2. O primeiro deles, em preto e branco, rapidamente estabelece uma dicotomia entre o que se ouve e o que se vê. Na tela, uma série de ruídos e texturas visuais formam os grafismos dessa imagem tátil. Pela forma e movimento que assumem, muitas manchas pulsantes de luz sobre a superfície parecem remeter a sons de relâmpago; mas eles, na verdade, inexistem. O que há é o permanente barulho da chuva, entremeado por passos, risadas, gargalhadas, latidas de cães e falas longínquas. Na tensão e no aparente desconforto sensorial, sons e imagens já não estabelecem uma unidade e, em vez disso, propõem difusos e complexos relacionamentos, a cargo da fantasia de cada um.

É distinta a situação de Chuva 2, vídeo marcado por um caráter mais intimista e contemplativo. Aqui, um tom róseo domina a projeção. Abrindo-se como uma paisagem, a forma-cor se dilata e contrai calmamente, tal como ondas junto à praia. Às vezes, parece fervilhar, com sua superfície crispada, como se recebesse múltiplos estímulos. Não há sons ou música, nenhuma interferência dessa ordem. De repente, porém, o silêncio é quebrado por um crescente ruído, intercalado por novos momentos de calmaria. É quando vultos humanos em contraluz perpassam a área rósea, revelando a escala entre as pessoas que por ali trafegam e o enigmático cenário, que Pellenz nos informa ser o detalhe de uma bomba d’água em meio à cidade. Faz diferença esse dado? Não. Tal como uma fantasmagoria do imaterial, para usar a expressão de Florence de Méredieu, a relação com o real é praticamente anulada, em favor da ênfase na imagem em toda sua carga de luminosidade, abstração e ficção. Nesse espaço programado, a razão e a percepção são abaladas, abrindo caminho para reações mais sensoriais, que priorizam particularidades como as cores, as formas e suas dinâmicas. A construção de significados, aqui, é inseparável da vivência, do ato de recepção como evento, do ato que implica não somente o olhar, ou a reflexão sobre o que se está olhando, mas, notadamente, o envolvimento de todos os sentidos nesse processo. As grandiosas projeções de Pellenz, portanto, clamam espectadores que se permitam engolfar, que se permitam a experiência, que se abram para outras compreensões.

Nos deslocamentos, sobreposições e interstícios de linguagens, as poéticas de Dirnei Prates e Nelton Pellenz instauram múltiplos estranhamentos. E, tal como a água diluviana das chuvas, suas imagens mexem com as estruturas associativas, propondo novas e pulsantes possibilidades para os sentidos, tantas vezes amortecidos.


Paula Ramos
Jornalista, crítica de arte e professora do Instituto de Artes da UFRGS


http://www.funarte.gov.br/

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